quinta-feira, 11 de março de 2010

O Tempo da Cor Branca

‘She's not a girl who misses much
Do do do do do do, oh yeah
She's well acquainted with the touch of the velvet hand
Like a lizard on a window pane.
The Beatles



Era uma quinta-feira e chovia como se os céus brigassem com algo, como se a terra afundasse enquanto nós dois subíamos como um elevador de precipitações e sentimentos metaforizados. Chovia ardentemente dentro de mim, naqueles teus olhos de vendaval, nas mãos caladas e confusas, nos ombros de escudo para o teu próprio peito. Meu amor. Meu amor de umas horas despencadas pelos céus, por línguas antigas, ruas cruzadas por emancipações e pela precoce inocência mutilada. Meu carinho de dias em velas sobre a toalha branca de palavras abertas. Meu afeto de mãos dadas e sorrisos de Avenida movimentada. Estar às três da tarde viva, estar às três da tarde acordada, estar às três da tarde num sentido de vaidade conjunta por sermos a coisa mais bonita daquela cidade. Fecharam as portas dos bares, lotaram as camas dormidas, esvaziaram os estacionamentos chuvosos de Dezembro, recortaram nossas fotografias para colar boca na boca, peito no peito.
Mas saudade, meu amigo, saudade é uma verdade desgraçada que cai com a chuva de uma sexta abafada, nublada, cinza. O fim da saudade, os últimos dois segundos, é a glória de transformar melancolia em feísmo; fazer arte com quebra-cabeça.
E sexta, dia de verdade a tapa, é invadir armário de lembranças com vontade em punho para arrombar cartas queimadas pelo fogo das minhas pernas de correr sem negar que isso é, também, tentativa.
O tempo não existe. Ontem você veio, hoje você foi.


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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Confesso

Você não me conhece

Eu tenho que gritar isso

Porque você tá surdo

E não me ouve

A sedução me escraviza você

Ao fim de tudo você permanece comigo

Mas preso ao que eu criei

E não a mim

E quanto mais falo sobre a verdade inteira

Um abismo maior nos separa

Você não tem um nome

Eu tenho

Você é um rosto na multidão

Eu sou o centro das atenções

Mas a mentira da aparência do que eu sou

E a mentira da aparência do que você é

Por que eu não sou o meu nome

E você não é ninguém

O jogo perigoso que eu pratico aqui

Ele busca chegar ao limite possível de aproximação

Através da aceitação da distância

E do reconhecimento dela

Entre eu e você existe a notícia

Que nos separa

E eu quero que você me veja nu

Eu me dispo da notícia

E a minha nudez parada te denuncia e te espelha

Eu me delato

Tu me relatas

Eu nos acuso

E confesso por nós

Assim me livro das palavras com as quais

Você me veste.

Fauzi Arap


Abri a gaveta, um dia desses. Aquela dos papéis sagrados. Uma carta aqui, um texto ali e um saquinho com todas as nossas lembranças que puderam ser escritas. Desenhos, palavras arrancadas do peito, aquela nota fiscal e um cartão que, na verdade, nunca foi escrito por você. Eram lembranças tão sagradas que perderam o gosto. Tão bem guardadas que desapareceram no meio de tantos outros papéis-amor. Um aglomerado de poemas que nem faziam sentido, nem tinham gosto e nem provocavam qualquer tipo de sensação. Porque, hoje, você é assim: não me provoca sensações. Nenhuma. Resquícios da tua mão na minha pele é uma ilusão que ainda tento guardar só para que, ao final de todos os imprevistos e desfechos, eu possa dizer que as minhas invenções eram doces o suficiente para não azedar.

Mas até as ilusões passaram como todas as ideias sem destino, rápidas feito vulcão. Nada sobrou, nem alimento para essas linhas.

Eu continuo viva, pulsando. Já você sem rosto, sem gosto e sem texto, limitado aos espaços das folhas amareladas.


Fevereiro. Lembranças. 2010.